Carlos do Carmo 45 anos de carreira

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Carlos do Carmo 45 anos de carreira

Carlos do Carmo, fotografado em 2008, altura em que celebrava 45 anos de carreira, por Rita Carmo

Carlos do Carmo 45 anos de carreira

Carlos do Carmo sobe hoje ao palco do Salão Preto e Prata, do Casino do Estoril.

O fadista celebra 45 anos de carreira ao lado de um vasto leque de artistas convidados e da Orquestra Sinfonietta de Lisboa.

Para assinalar quase meio século de trabalho, Carlos do Carmo reuniu nomes como António Vitorino de Almeida, Carlos Bica, Carlos Manuel Proença, Fernando Araújo e José Manuel Neto, entre muitos outros, que em palco, juntamente com o cantor recordarão vários êxitos que têm marcado a sua carreira. (…)

In Cotonete – Outubro 2008

A vida de Carlos do Carmo confunde-se um pouco com a própria história do fado. Este sábado, a partir das 22 horas, o Pavilhão Atlântico, em Lisboa, recebe o fadista, num concerto em que vai revisitar, com vários convidados, 45 anos de carreira.

Apesar de, na juventude, Carlos do Carmo não ter pensado em seguir a carreira de cantor (chegou a estudar hotelaria, gestão e línguas na Suíça), tornou-se uma referência do fado desde que, em 1963, gravou o primeiro disco.

Quando o fadista der início à sua actuação, num concerto a que, afectivamente, chamou “Fado maestro”, título de um dos seus primeiros fados, o público esperará que cante temas incontornáveis como “Canoas do Tejo”, “Gaivota” ou “Lisboa Menina e Moça”, para só citar alguns dos quase 50 clássicos que marcaram a sua carreira e aos quais deu um estilo próprio, alargando os horizontes do fado.

“A comparação é, talvez, fútil, mas atrevo-me a dizer que Marceneiro cantou os fados de Lisboa e que Carlos do Carmo canta Lisboa em fado. E, por isso, quando longe desta cidade eu o ouvia, ele trazia-me sempre naquilo que cantava a cor, o ruído, o cheiro, a gente, o paradoxo de uma saudade que doía e, ao mesmo tempo, consolava”. As palavras são do professor João Lobo Antunes e foram escritas a propósito de Carlos do Carmo.

Filho de uma fadista famosa, Lucília do Carmo, o cantor passou a sua adolescência e juventude mais virado para outros géneros musicais. Admirava Frank Sinatra, Ray Charles, Louis Amstrong e Jacques Brel. Mas não esconde que apreciava o fado, ou não tivesse convivido com ele desde criança (os pais eram donos de uma casa de fados, O Faia).

Aliás, foi enquanto ajudava os pais na gestão deste espaço que, aos poucos, o fado se foi entranhando na sua alma. A pedido de amigos, também já cantava um ou outro fado. E, quando menos esperava, descobriu que havia cada vez mais público a ouvi-lo.

Pois é sobre esta vida de canções que o fadista assenta o concerto de hoje. Será acompanhado pela Orquestra Sinfonietta de Lisboa e leva consigo diversos convidados, como os fadistas Camané, Carminho e Mariza, o pianista Bernardo Sassetti, a cantora basca Maria Berasarte e o seu filho, Gil do Carmo. O espectáculo será também integrado no 125.º aniversário da Voz do Operário, pelo que as receitas do mesmo irão reverter a favor desta instituição.

Refira-se que os 45 anos de carreira do artista foram assinalados com a edição do primeiro “best of” da sua carreira, “Fado maestro”, editado neste mês.

(in JN –  29 Novembro 2008)

CARLOS DO CARMO está prestes a subir ao palco no Pavilhão Atlântico, para cantar do alto dos seus 45 anos de carreira uma série de clássicos que estão entranhados na nossa identidade e que agora se reúnem também em Fado Maestro, antologia que segue os diferentes percursos do tempo e do gosto, da memória e da alma. O duplo CD mais DVD com documentário que inclui depoimentos de ilustres como José Saramago e algumas actuações ao vivo é uma amostra clara do impacto que Carlos do Carmo teve na história de uma canção que ajudou a fincar Lisboa no mundo. Filho da lendária Lucília do Carmo, o homem de “Canoas do Tejo” é dado a vigorosas paixões musicais, é um mestre da memória e óptimo contador de histórias, condição obrigatória para o seu canto particular. A entrevista decorreu em casa de Carlos do Carmo, num décimo andar com vista privilegiada para um presente feito de transformações. O olhar sobre o Tejo, confessa o fadista, foi-se perdendo com o progresso de betão, mas o rio que cantou continua no centro da sua vida.

Esta viagem começa, como todas, pelo princípio.

Construiu uma carreira sempre a olhar em frente, mas agora teve que olhar para o passado, eleger músicas e deixar canções de fora. Como é que lidou com esse processo? Já estive ligado à Philips, à Phonogram, à Polygram e agora à Universal. Normalmente, no fim do ano quando eles fazem o inventário colocam “36 cadeiras, 18 armários” e incluem-me a mim também. Já faço parte daquele mobiliário (risos). E agora aconteceu uma coisa muito curiosa: em Portugal ficou uma directora espanhola à frente da companhia e em Madrid está um director francês e tudo mudou a meu respeito. De repente começaram a tratar de mim como eu, confesso… (longa pausa) não estava minimamente à espera de ser tratado. Apresentarem-me projectos… Toda a minha carreira discográfica foi pautada por projectos meus e as coisas iam-se consumando, os discos iam-se vendendo e todos eles venderam sempre bem! Mas agora, de repente, surgem-me estas pessoas com ideias. Esta da retrospectiva é apenas uma delas: eles têm várias entre mãos. Para este “best-of” perguntaram-me: “o Carlos era homem para se pôr ao trabalho e escolher o alinhamento?”.

E o Carlos do Carmo arregaçou as mangas… Sim, respondi: “Bem, isso é capaz de ter a sua graça. Quero começar por vos dizer que não gosto muito de ouvir os meus discos porque ouço tantos erros, tantos defeitos que fico assustado. Mas como se trata de fazer o “best-of” vou tentar juntar o gosto à emoção, porque as coisas têm que ter significado. Por isso, para já vou propor-vos que um dos discos seja cronológico vou começar no início da minha vida, 1968. Isso quer dizer o quê? Que de 68 para trás não gravei nenhum LP, gravei apenas singles EPs. Portanto, começamos em 68, vamos por aí a fora até 2008 e fazemos quarenta anos de história num CD. E no outro, vou escolher mais aleatoriamente, um pouco de poetas, um pouco de outras coisas que eu sinta que têm alguma coerência entre si”. E neste processo levei muito tempo a ouvir tudo o que eu gravei. Porque eu tenho tudo gravado, sou como os ferros-velhos e guardo tudo. E procurei que isto fosse honesto, ou seja, que não houvesse aqui química, que não houvesse novas misturas, nada que fosse adaptado ou que tivesse o que quer que fosse alterado. Quem pegar nestes discos vai ouvir o que foi gravado, no tempo em que foi gravado, exactamente como foi gravado. Não há retoques. A técnica de 1967 é aquela, a técnica de 2007 é aquela, o engenheiro de som de 2003 é aquele e o de 1988 é outro.

E consultou amigos, foi mostrando as escolhas que ia fazendo a alguém? Foi um trabalho muito solitário, muito mesmo. Foi um trabalho que fiz ali naquele cantinho do meu escritório (aponta para uma secretária), com pilhas de discos, auscultadores. Ouvia agora um bocado, depois, no dia seguinte, ouvia mais. Ouvia de trás para a frente, da frente para trás. Procurava encontrar significados: “porquê isto?”, “Porquê este trecho?”, “O que é que me serenou nisto?”, “O que é que ele explica, o que é que ele tem para mim como significado?”. [Encontrava respostas] e então deixava ficar.

Como é que alguém em 1963, quando existia um alargado fascínio pela modernidade e a pop estava a explodir com os Beatles a revelarem-se um fenómeno mundial, opta pelo fado em vez de se agarrar a uma guitarra eléctrica? Eu nunca deixei de gostar de outros tipos de música. Mas eu estava rodeado desse meio, estava imerso nesse meio. E, talvez mesmo por isso, nunca se quis rebelar? Eu tive um período na minha adolescência em que contestei o fado seriamente. Não queria ouvir fado, achava-o uma coisa menor, terrível. Qual é a palavra que eles usam agora em relação aos mais velhos? Careta! achava o fado careta. Por isso, claro que também tive esse período e vivi-o intensamente.

O FADO TROPICALISTA

A imersão de Carlos do Carmo no fado começou muito cedo, mas nem por isso este homem deixou de buscar horizontes mais alargados, tornando-se um verdadeiro cidadão do mundo. Estudou na Suíça e descobriu o Brasil em velhos discos de 78 rotações que muito depressa deixaram de ter segredos. A sua ligação ao país do samba e do futebol continua forte até aos dias de hoje.

Refere no documentário incluído no DVD de Fado Maestro que a sua mãe cantou até muito tarde na gravidez e que até isso terá sido determinante nas suas opções. Até poucos dias antes de eu ter nascido. Punha lá o xaile, para disfarçar a barriguinha… eram tempos muito difíceis. Eu nasci em 1939 e esses foram tempos muito difíceis. Todo o dinheiro que eles pudessem juntar para sobreviver era importante. Mas eles trataram-me sempre como um príncipe e não me deixaram faltar nada. [Era] fado, fado, fado. E eu ouvia. Mas a minha mãe, em determinado momento, foi fazer uma tournée ao Brasil e trouxe-me discos de 78 rotações, daqueles quebráveis, onde vinham gravadas canções extraordinárias do Luiz Gonzaga e do Dorival Caymmi. E eu habituei-me a cantar essas canções que foram mesmo as primeiras que eu cantei na vida.

A música no Brasil como aliás aconteceu em Portugal também foi documentando a evolução na sociedade, as transformações políticas. Interessava-lhe esse lado? Claro, muito. E posso dizer que o meu envolvimento com a música brasileira foi também político. Eu comecei a cantar no Brasil entrando pela porta dourada: cantei lá pela primeira vez no Copacabana Palace, no Golden Room, com a Elis Regina. E no dia a seguir estava a cantar com o Roberto Carlos num programa de televisão em directo. Até que a vida política brasileira mudou radicalmente com a chegada da ditadura militar. E, entretanto, eu ia lá cantar, estranhamente, para festejar o 25 de Abril, a pedido do Major Vítor Alves, hoje coronel. Ele costumava dizer: “Ó Carlos, sítios difíceis é contigo”. E mandava-me à Venezuela, aos Estados Unidos, para ir dizendo às pessoas que o 25 de Abril tinha acontecido. Agora, imagine chegar ao Brasil, que tinha uma colónia salazarenta, para festejar o 25 de Abril na ditadura brasileira. Enchíamos o Teatro João Caetano com grandes artistas do Brasil, os maiores, e cantávamos para público brasileiro que aproveitava o cheirinho a liberdade que eu trazia. Em compensação estreitavam-se laços com grandes artistas brasileiros. Como era conviver com figuras lendárias como a Elis Regina? Fui amigo dela. No dia a seguir a esse nosso concerto ela fez uma moqueca de peixe em casa, para mim e para os meus músicos, ainda o Thilo (Krassmann) era o meu director musical. Quando vinha a Lisboa telefonava-me e estávamos juntos. Mas fiz amizade com outros músicos, especialmente com o Ivan Lins. Tenho uma ligação afectiva muito forte com o Francis Hime, que foi meu colega na Suíça. Gosto muito do Chico (Buarque).

Essa geração ensaiou algumas aproximações ao fado. “Os Argonautas”, de Caetano Veloso, o “Fado Tropical”, de Chico Buarque… O Chico Buarque fê-lo de uma forma politizada, lúcida, social, muito à Chico. Ele é um derramador de pérolas, um sujeito com um talento ímpar. O Caetano Veloso… tinha mais a ver com a paixão pela Amália Rodrigues. A ligação dele e da irmã ao fado tem tudo a ver com a Amália, com a paixão pela Amália. O Chico não.

A ligação dele ao fado era mais política. A gente ouve o “Fado Tropical” e percebe que de cabo a rabo o que está ali é político.

A música brasileira é um exemplo admirável de um corpo em permanente reinvenção. Mas, olhando para a história do fado, durante muito tempo deu a ideia de que era uma estética resistente à inovação. Que pensa disso? Eu não considero que haja Brasil… há “Brasis” e isso já diz muito. Em cada canto do Brasil há uma música: no Rio Grande do Sul o que se ouve não tem muito a ver com o que há no Nordeste. Depois, o brasileiro tem o culto da música, o brasileiro respira com a música, e todo o brasileiro gosta de cantar colectivamente. Tudo isto está marcado na música brasileira que em determinado momento entrou num patamar elevadíssimo com uma série de grandes nomes a cantar em simultâneo no Brasil e fora. É uma lista extraordinária: João Gilberto, Ivan Lins, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil… a lista não tem fim. E depois havia os sambistas tradicionais, o Paulinho da Viola, o Martinho da Vila, e ainda os nordestinos. E havia mulheres também: a Elis Regina, que eu considero “a” cantora. Nunca conheci uma outra mulher a cantar assim em língua portuguesa. Insubstituível nos meus ouvidos, na minha mente, nos meus sentimentos. Uma coisa do outro mundo, uma mulher que dilacerava uma canção, que a desfazia. Uma coisa impressionante, de desgaste, de entrega, de génio.

A PAIXÃO POR SINATRA

Aberto ao mundo, Carlos do Carmo cedo se apaixonou pela classe de Frank Sinatra, uma das suas maiores referências.

Recentemente cantou dois dos seus clássicos, surpreendendo uma audiência habituada a ouvir a sua voz a dominar outra língua, outra poética.

Falou aqui do Brasil, mas tem outras referências fortíssimas, como o Sinatra, por exemplo. Sente que transporta na sua voz um bocadinho dessa paixão pelo Brasil, outro do que ama no Sinatra? Há tudo, lá dentro. Na minha cabeça, tudo isso existe: o Brel, a Elis, a minha mãe, a Maria Teresa de Noronha, a Amália, com certeza, o Marceneiro, o Carlos Ramos. Tudo isso está cá dentro da cabeça e por isso é que não se canta duas vezes da mesma maneira. Por isso é que este triângulo cabeça, coração e voz é muito irregular. Há dias em que estamos inspirados e tudo nos sai bem e outros em que não vale a pena porque não sai nada.

Lembra-se de ouvir Frank Sinatra pela primeira vez? Se me lembro! Foi na Costa de Caparica, tinha eu para aí uns 12 anos. Fiquei absolutamente deslumbrado e nunca mais o perdi de vista. Posso até dizer-lhe, com algum orgulho, que os únicos vinis que mantenho aqui em casa são os do Sinatra, a colecção completa. É muita coisa: o Sinatra foi o meu segundo professor de inglês. Tinha inglês na escola e depois aprendia em casa com os discos do Sinatra, porque nele não se perde uma única palavra. E à medida que me fui tornando homem fui aprendendo a ouvi-lo cantar as mesmas canções em diversos registos e percebia que o estado de espírito dele ia mudando e isso levava-o a utilizar as mesmas palavras de forma diferente. Noutra perspectiva, da densidade da canção, temos o [Jacques] Brel. O Brel não brinca em serviço. Com ele é tudo muito a sério. Tão a sério que um dia ele deixou de cantar e quando lhe perguntaram porquê ele respondeu “porque já não tenho mais nada para dizer às pessoas”.

A Amália gravou um álbum de canções da Broadway. Nunca lhe passou pela cabeça pegar no cancioneiro de Sinatra, de Brel, e fazer um disco noutra língua que não o português? Um disco não, mas há uns dias cantei no Campo Pequeno com a orquestra de Count Basie e o maestro disse-me uma coisa tão linda: “Olha, Carlos, eu acompanhei muitas vezes o Sinatra e sabes uma coisa? Foi bom, porque trouxeste-me o Sinatra de volta”. E eu fiquei muito comovido. Cantei o “I’ve Got You Under My Skin” e o “You Make Me Feel So Young”, duas das 20 ou 30 canções do Sinatra que eu sei cantar de cor.

Tantas canções davam para dois álbuns… Pois, mas não, nunca pensei nisso. As pessoas ficaram muito surpreendidas e foram muito amáveis comigo, mas não é algo que planeie fazer. Gravei Brel, o “Le Valse à Mille Temps”, há uns 20 anos. Mas não posso dizer que dessa água não beberei… talvez com a idade apareçam projecto. Estes malucos [da editora] querem que eu para o ano grave um disco de duetos, mas com quem eu quiser. Ou seja “está-me a apetecer fazer uma coisa com o Tony Bennett”. “Então a gente vai tratar disso”. “Está-me a apetecer gravar com o Paco de Lucia”. “Nós tratamos disso”. Foi um desafio posto de tal ordem que com a idade que eu tenho para o ano vou ter 70 anos, tenho 68 anos, vou fazer 69 daqui a pouco tempo não sei se não terá piada, se eu tiver saúde e alguma lucidez. E obviamente que terei duetos em Portugal, era o que mais faltava se assim não fosse. Serão com pessoas que eu amo, mas não as vou dizer para já.

Não quer levantar um pouco o véu sobre esse projecto? Bem, há tanta gente. Na canção francesa, por exemplo, há gente que eu admiro, mas teria que fazer um estudo… Também gosto muito da canção italiana, onde há intérpretes e cantores magníficos.

E na América, as novas divas do jazz não o fascinam? Diana Krall, Norah Jones?… Não. Quer dizer, quem ouviu como eu ouvi a Billie Holiday, a Ella Fitzgerald, a Sarah Vaughan a cantar a dois metros de mim, tem um grau de exigência elevado. Sem qualquer menosprezo: acho imensa graça à Diana Krall, a Norah Jones é encantadora… Da Diana Krall só tive ciúmes de uma coisa: de um orquestrador que ela usou para um disco e a que o Sinatra também recorreu quando gravou com o Jobim o Claus Ogerman. Eu iria a pé… não digo até Fátima, porque isso seria ofensivo, eu sou crente, mas não diria isso mas iria até qualquer lado para ter um ou dois arranjos do Claus Ogerman num disco meu. Sabe o que é? É um colchão de penas de violinos. Mas o homem vive lá no interior da Baviera, na floresta, e acho que é inacessível. Sabe ele lá quem é o Carlos do Carmo…

ESTA LISBOA QUE ELE AMA

Chegar aos 45 anos de carreira e não perder o contacto com as novas gerações é raro e louvável. Carlos do Carmo continua a saber olhar para lá do fado, facto que só se pode entender à luz de uma generosidade franca.

Sam The Kid juntou Carlos do Carmo e Carlos Paredes no tema “Viva!”, criado para a compilação Movimentos Perpétuos, de homenagem ao grande guitarrista, e deixou claro que a memória pode conviver com a modernidade. Carlos do Carmo emocionouse com o gesto. Como se emociona com a Lisboa que ama e sente estar a perder-se.

Quem sabe muito bem quem é o Carlos do Carmo é o Sam The Kid. Gostou de se ouvir samplado por ele? Muito, mesmo muito. Tenho uma muito boa relação com ele. O Sam é um miúdo muito giro, muito inteligente, muito atento. Ele é um farol.

De certa maneira, o Sam e o Carlos têm em comum esta cidade que é Lisboa: ambos a traduzem na vossa música. Não é muito comum ver estas sintonias entre gerações tão diferentes… Os portugueses são muito preconceituosos. Isso faz mesmo parte da nossa lista de defeitos graves. É muito feio falar das pessoas sem as conhecer e eu não posso falar do Samuel sem o conhecer. Uma vez a equipa da Universal trouxe o Samuel aqui a casa e ficámos aqui os dois à conversa. Ele com o seu chapéu e nós os dois a mandar vir. E eu adorei o miúdo. Adorei-o. Achei “eh pá, este miúdo é gente”. Passado um tempo apareceu-me uma coisa em que estava eu samplado e alguém “Então Carlos, não acha isto uma vergonha?”. “Vergonha? Então o rapaz lembrou-se de mim, lembrou-se do Paredes. Isto quer dizer que o rapaz quer trabalhar a memória. É um encanto”.

Seria capaz de se imaginar a gravar um tema sobre uma batida do Sam the Kid ? Mas porque não? Vamos lá ver as coisas: o Sam é muito bom. E a malta diz que o Carlos do Carmo não é mau. Por isso, tudo bem.

E isso irá acontecer? Ainda estou a digerir o meu disco chamado À Noite, que não tem um ano. Aquele disco deu-me trabalho, trazer novos poetas para o fado. E agora tenho um novo disco e o espectáculo do Pavilhão Atlântico, que é uma espécie de dois em um. Tivemos a sorte de arranjar patrocinadores que pagam as despesas do concerto e por isso vamos dar toda a receita mas toda mesmo à Voz do Operário, que este ano faz 125 anos e de que eu sou sócio há muito. Eles têm um trabalho social notável, de escola, de assistência à terceira idade. têm um trabalho sério, mas também sérias dificuldades de dinheiro. E eu vou tentar dizer à população de Lisboa que pode ter um contributo válido para esta instituição.

O Carlos não se limita a cantar o Tejo, também está pronto para defendê-lo. É signatário da iniciativa liderada por Miguel Sousa Tavares, de oposição ao alargamento da muralha de contentores que separa as pessoas do Tejo… Então andamos anos a tentar voltar a olhar para o rio, porque estávamos de costas viradas para ele, e de repente querem-nos tapar o rio? Mas o que é isto? O pai do meu pai era de Lisboa, o meu pai era de Lisboa, eu sou de Lisboa, os meus três filhos são de Lisboa, os meus quatro netos são de Lisboa… são cinco gerações. Não me dêem mais cabo disto.

Artigo de Rui Miguel Abreu, publicado originalmente em 2008 Fotos de Rita Carmo

(in Blitz 02.07.2014)